30.3.09

Agora compreendo-te.

Percebo a tua razão. Só não era minha porque em vez de aprendizagem

escolhi evasão.

Que é quase o mesmo que o recreio da tua aprendizagem.

E com o curso natural das coisas mal se nota a diferença.

Mas há diferença, sim.

Há-me a mim.

Onde é que isso estava?

Não, o mundo não é como eu pensava e

de cada vez que pensar ele pode ser diferente.

Algum deles há-de ser mais simpático que o outro

e o critério de desempate é sentido que faz (ou não faz).

Onde fizer mais sentido, bate o pé.

Menina feia. Menina linda. Menina.

Sim, tens razão. E eu admiro-te, porque cresces sempre mais depressa do que eu.

Quando chego, já tu lá estiveste antes de mim. Voltas atrás para me lançar um olhar reprovador,

fazes-me sentir tão errada, como sempre,

fora do compasso, fora de horas,

demasiado perto, demasiado longe,

nada.

Demasiado tua.

Quem te pediu, menino?

Menino mau. Menino bom. Lobo. Lobo Mau. Raposa. Principezinho.

Não estrangules a flor, que é isso então?

É assim que és responsável pelo que cativas?

*

A responsabilidade é só aprendizagem.

No recreio, vamos apertar as mãos e fazer as pazes.

24.3.09

Às vezes dou por mim a morar num mundo qualquer longe daqui - nas esperas, quando os movimentos do mundo não me distraem. Tudo faz sentido, tudo está no seu lugar,
mas eu nunca pertenço, nem me convenço com a solução matemática para o problema que é literário.
Tenho o casaco virado do avesso.
A saia é demasiado comprida para perceber porque é que os sapatos não me cabem nos pés,
(será que cresci assim tanto de um dia para o outro?)
E porque é que temos que andar tanto? Para onde é que vamos?
Vamos dizer-te adeus, avó.
Queria despedir-me à distância dos resquícios da tua existência,
para mim já não estavas ali.
Mas acabei por dar dois ou três passos, os passos necessários,
beijei a tua testa e pousei as minhas mãos sobre a tua cara.
Estavas tão fria.


Dentro do café está quente. O fumo incomoda-me, especialmente quando me lembro que os fumadores passivos acabam por ser mais prejudicados que os activos. Mas 'ninguém cá fica', como eles bem dizem. Por isso acho que não faz mal. De que é que vale defendermo-nos tanto, afinal de contas? Esforço-me por sorrir, forço um bocadinho de alegria, amanhã pode ser tarde e a festa ter acabado. Mas mesmo quando estou alegre, fica em mim esta tristeza afável - macaquinho de feira sentado no meu ombro. Tenho-lhe carinho até, mas faz-me pensar, faz-me sentir que me falta ainda um pedaço grande de vida para existir. Brincamos e rimos e falamos de coisas banais. Somos sinceros, amigos e, assim, não estamos sozinhos. Mas nunca deixamos de estar.

Não quero pensar mais. E quero ter mais razões para sentir, que assim não sinto que sinto em vão. Guardo comigo os sonhos, as lembranças, as tintas para pintar um mundo onde ainda não cresci demasiado. Os filmes, os livros, a música. Mudei tanto (tanto) que continuo na mesma.

E quando olhas para mim como se eu fosse grande e tivesse culpa do que nem adivinho...
Sofres quando não precisas, usas esse tom sério e responsável que me condena, como se não soubesses falar outra língua.
Vejo-te pintar um céu negro, trovoada e pedras pesadas nos teus sapatos,
e eu fico à porta - não, obrigada.
Aqui deste lado o tempo é mais ameno,
o sol ilumina-te os traços que eu reconheço e eu enxugo-te os cabelos molhados pela chuva que já passou.
Está tudo bem. Não esperas mais do que tenho para te dar.
E tens a coragem de o receber.
Amanhã seremos nós, mas tão diferentes

que tudo isto não terá sido mais que uma festa que continua agora noutro lugar.

23.3.09

- Quero tomar conta de ti.
- Então porque é que mataste o meu gato?
- Oh, não mudes de assunto. Sabes perfeitamente que esse teu gato tem instinctos suicidas. Para não falar do facto de ele ser um cão.
- Seja como for. Se nem sabes tomar conta do meu gato, como é que vais tomar conta de mim?
- Ao abrigo da lei universal nº 12345 do artigo 7., redigido em atenção às circunstâncias biológicas da raça humana que dizem - e não cito porque nunca o li na íntegra - que a minha estrutura óssea e muscular foi arquitectada pela natureza para proteger a tua, claramente mais frágil.
- Não me parece que haja perigo à vista, Tarzan. Deixa-te estar.
- E o Direito? E a Moral?
- A minha Ética pessoal permite-me declinar a gentileza com que dispensas esse teu escudo sem crises de consciência. Porque não te sentas simplesmente ao meu lado? Isso. Mas não fiques tão irrequieto.
- Não sei funcionar assim. Não é natural. O que é que é suposto eu fazer agora?
- Sei lá. O que quiseres. Podes dizer qualquer coisa e depois eu respondo-te. Ou podemos ficar em silêncio. Já sabemos o que é que somos segundo a lei tal do artigo tal da biologia, mas eu não te conheço. Ninguém te tira o talento para a dualidade de que tanto falas. Mas há muito mais que se lhe diga quando se trata de uma pessoa. Podes só ser tu por um bocadinho, para eu te ver e poder sentir qualquer coisa mais que a tua estrutura óssea quando te abraçar?
- Mas onde há amor não há poder.
- Exactly.


If I fell in love with you
Would you promise to be true
And help me understand
'Cause I've been in love before and I found that love was more than just holding hands.

If I give my heart to you
I must be sure from the very start
That you would love me more than her...

If I trust in you, oh please
Don't run and hide...


Beatles, The

17.3.09

In vino veritas.
But the next day you can't remember.



The truth shall set you free (+ give you a giant headache).

La, la, la, la, la. (There's a song in my head.)

Bum, bum, bum, bum - pa! (There's a drum in my bed.)

C, D, E, Bflat - (Tonight I'll sleep tight and dream of the things I missed when I was awake.)

~Your absence is coming, I can feel it.

And I won't heal it with all the loving arms in the world.

12.3.09

Certa vez tive um sonho estranho.

Estava num país qualquer experimental - esta é a palavra mais acertada que me ocorre para descrevê-lo - onde a ameaça de guerra era tácita e o inimigo absolutamente anónimo. Estávamos sozinhos. Só havia um lado, onde estava o 'Nós', e o 'Outro' era só o perigo que pairava no ar meio nebuloso e dava nós no fundo dos nossos estômagos.

Lembro-me que tínhamos todos idade para frequentar o ensino primário, também nós éramos um pouco experimentais e bizarros, órfãos e assustadiços. Lembro-me apenas de uma sala de aula servilmente claustrofóbica - o chão forrado por uma carpete castanha clara, na parede à nossa frente a projecção de um filme a preto-e-branco sem vestígio de humanidade. Ninguém sabia bem o que estava ali a fazer. Só o medo pairava sobre as cabeças de todos, inclusivé dos professores, que eram ligeiramente mais baixos que os próprios alunos e de longe mais temerosos.

Mas aquilo que realmente me impressionou foi um momento particular em que, ao sentir um ligeiro desconforto, baixei a cabeça e olhei para as minhas mãos. Na palma, em vez da pele tracejada pelas linhas habituais, um corte que a separava em duas partes iguais, qual janela, e deixava ver um conteúdo peturbador. No interior, pequenos véus feitos de uma matéria qualquer irreconhecível agitavam-se suavemente, como se de cortinas ao sabor do vento se tratassem, rodeadas por pequenas ramificações que faziam lembrar plantas e que cresciam cada vez mais, para depois se enredarem umas nas outras e desaparecerem de novo para o nada, de onde surgiam sempre outras tantas.


Toda essa ágil movimentação resultava numa dor que a atmosfera anestesiante potenciava, uma sensação de estrangulamento das veias e artérias, agora convertidas em ramos e folhagem.
Ao mesmo tempo, o fascínio que acompanhava o testemunho do espectáculo, tão belo e assustadoramente visceral. Se o funcionamentointerno da minha mão era puramente vegetal, talvez eu fosse, afinal, semelhante a uma planta.
De repente, e apesar da dor pesada que ainda persistia, senti-me a salvo de todos os perigos que pesavam sobre o meu jovem entendimento.
Naquele momento, foi quase como se até pudéssemos ser livres...

3.3.09

Se a Eva comeu a maçã, foi porque estava com falta de açúcar no sangue. De certeza que o médico aprovou.

Ele não disse. 'Gosto que estejas aqui, a olhar para mim, e esta gente toda à nossa volta. Gosto que olhes para mim para veres que eu estou a olhar para ti. Não quero que me admires. Eu sou só um pequeno carpinteiro à deriva num mar de oportunidades feitas de fumo ou água a dois passos do ponto de condensação. Amanhã posso não ter uma única moeda no bolso, mas continuo a ser a pessoa que gostas de encontrar pelo caminho. Sorrio-te enquanto te mostro como sou pequeno e inacabado. Estou ainda a começar; eu sei, eu sei que já devia estar longe. Mas não tenho pressa que me obrigue a não andar devagar.'

Ela disse. 'Gosto dessa camisola que trazes hoje. Faz-me lembrar cortiça ou madeira ou mel. És um pequeno arquitecto de sonhos, diz lá que não? Não me leves para lado nenhum, aqui está toda a gente, mas que mal é que isso tem? Aqui não está ninguém. Temos importância zero na vida um do outro, mas este momento é nosso. Sorri - para eu saber que estás feliz. Isso deixa-me feliz também. Os meus pensamentos são meus. E eu penso em ti, de vez em quando. Mas quando os momentos passam, já não são nossos. Já não são. E então? Dizemos até amanhã, e amanhã pode ser daqui a muito ou pouco tempo. Pode até não ser. Mas se for, que tu sejas sempre teu e que eu seja sempre minha, para que o momento seja nosso.'

Ele disse: 'Olá. Eu sou o Adão. Dou-te um pedaçinho da minha costela e, se quiseres, uma fugaz ilusão de livre-arbítrio, enquanto te agarro na mão e te esvazio dessa tua incómoda mania de pensar ideias tuas. Serás minha companheira e poderás admirar os meus triunfos, celebrar comigo, rir com a caça à felicidade quando eu a declarar aberta. Serei gentil contigo, ainda que sintas em ti o vazio da comunhão virada do avesso. Terei sempre tempo para ti, enquanto me admirares.'
Ela pegou na maçã, trincou-a e disse: 'Vai à merda, parvalhão.'