25.8.08

Aquela calma. Aquela serenidade. Aquela arrogância, até.
Tudo nele era mérito, sabedoria.
O silêncio abafado da chuva que cessava lá fora, e a sua voz - melodia contrapontística, sem percussão (salvo as batidas secas dos conceitos-chave e as bofetadas de luva branca do que poderia ser pura evidência).
Sempre o mesmo discurso,
sempre a redundância de rabo na boca.
Nada de novo a acrescentar e a escola da vida sempre a rebentar pelas costuras com alunos que nunca aprendem a lição.
Ele não.
O seu nome estava no quadro de honra havia muito tempo.
Ele começara a dar aulas no seu primeiro dia de aluno, aprendera a ensinar-se a si próprio e a esquecer tudo o que lhe pediam para lembrar. Datas, nomes de ruas, regras de etiqueta e receitas para bolos: amnésia, estado avançado. Falhas de memória imperdoáveis para os que conseguiam fazer uma bavaroise de frutos silvestres estupenda - mas não faziam ideia de como viver consigo próprios.
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Talvez nisso ela pudesse dizer "percebo-te",
nisso e em tudo o resto,
ainda que em aparência a sua má memória fosse invertida.
Mas ela cozinhava também por adivinhação, juntava os ingredientes que sentia fazerem sentido, nas quantidades que a mão conduzida pela sagaz intuição permitia e rezava em profano para que o resultado fosse mais harmonioso que catastrófico.
E lembrava, como os traços definidos de um sonho recorrente,
tudo o que era para ele claro e consciente,
tudo o que realmente importava - mais do que qualquer coisa importar realmente.
Mesmo assim, era sempre aluna repetente,
só porque gostava de aprender tudo de novo, e que ele lhe ensinasse o que ela já sabia. Era tudo tão real, verdadeiro, quando era ele que o dizia - e ela queria ser plateia dos seus próprios pensamentos pensados e ditos por ele. Fechar os olhos e ouvir-se na boca dele, e ser olhada por ele como se pelo seu próprio espelho, como se a própria humanidade a contemplasse e a lembrasse de tudo aquilo que por condição a tinha feito esquecer.
.
Da raíz à ponta dos cabelos dele havia paz, mas os dela serpenteavam em cachos labirínticos, conflitos quase involuntários e restos de pesadelos a acordá-la apesar do sol deslumbrante da manhã...
Como se de açúcar/sal se tratasse:
"Chega de alegria, obrigada" - dizia ele.
"Um pouco menos de tristeza, se faz favor" - dizia ela.
E assim se encontravam, depois do pequeno-almoço, a meio caminho entre a miséria e a felicidade, para subirem juntos no elevador para um qualquer acordo entre termos.

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